Nos conte um pouco sobre a importância das gorduras na alimentação.
O grupo de gorduras é de extrema importância na nossa alimentação. Dada a diversidade estrutural dos lipídeos, estes possuem uma diversidade de classificações e funções, e dessa forma, cada tipo de lipídeo tem uma importância para o organismo. Assim, os lipídeos que consumimos através da dieta, além do aporte de energia que fornecem, são substratos para a síntese de diversas biomoléculas essenciais para o nosso organismo, como hormônios, ou atuam diretamente como biomoléculas ativas como as vitaminas lipossolúveis e algumas classes de ácidos graxos. Os lipídeos possuem ainda importante função estrutural nas células por comporem a membrana celular. Dentre as classes de lipídeos, os ácidos graxos são os principais substratos energéticos do organismo. Mesmo com esta função bem definida, esses podem agir como moléculas sinalizadoras, ativando vias de sinalização de acordo com suas características estruturais. Enquanto ácidos graxos com cadeia saturada apresentam capacidade de ativar vias de sinalização que resultam na ativação de inflamação e resistência insulínica, ácidos graxos poli-insaturados (AGPI) com a primeira insaturação no carbono de posição três (série n-3) são capazes de promover ação anti-inflamatória, por ativação de outras vias de sinalização. Assim, os AGPI da série n-3 vêm sido amplamente estudados, revelando importantes benefícios para a saúde. O precursor dessa classe de ácidos graxos, o ácido linolênico, é um ácido graxo essencial, uma vez que não pode ser sintetizado pelo nosso organismo. No nosso organismo, esse ácido graxo pode ser usado como precursor dos ácidos eicosapentaenóico (EPA) e docosahexanóico (DHA), que são os principais responsáveis pelos efeitos benéficos do óleo de peixe, que tem sido foco de estudo do nosso grupo de pesquisa.
Quais os benefícios da ingestão do óleo de peixe?
O óleo de peixe é uma fonte importante de AGPI da série n-3 de cadeia longa, como o ácido eicosapentaenóico (EPA) e o ácido docosahexanóico (DHA). Estes ácidos graxos podem ser sintetizados endogenamente a partir do ácido graxo essencial linolênico, ou serem obtidos diretamente na dieta pelo consumo de alimentos fontes, como os peixes de água fria. Estes AGPI n-3 atuam modulando vias de síntese e oxidação de lipídeos, resultando em uma importante ação hipolipemiante. Estas ações têm sido benéficas em modelos de obesidade, dislipidemia, e doença hepática gordurosa não alcoólica. Além disso, esses ácidos graxos apresentam importante ação anti-inflamatória. Em modelos experimentais com animais, esses efeitos benéficos são muito claros, podendo ser observado tanto em animais metabolicamente comprometidos como em animais saudáveis. Além desses efeitos, observa-se impacto do consumo desses AGPI n-3 na redução de adiposidade e peso corporal, bem como na homeostase glicêmica. Em humanos, estudos mostram efeitos mais claros em indivíduos com dislipidemia, ressaltando um papel protetor desses ácidos graxos contra o desenvolvimento de doenças cardiovasculares. Assim, muitas sociedades de cardiologia, inclusive a Sociedade Brasileira de Cardiologia, indicam o consumo de AGPI n-3 por indivíduos com dislipidemias, como adjuvante no tratamento, reduzindo o risco de doenças cardiovasculares.
Existe diferença entre os diferentes tipos de peixe em relação à composição dos óleos? Quais seriam os melhores?
Existe sim, pois o conteúdo de EPA e DHA presente nos peixes depende do conteúdo de AGPI n-3 que esses peixes consomem, através do consumo de algas. A diversidade de algas presentes no fitoplâncton de águas frias e profundas apresenta elevado conteúdo destes ácidos graxos e constituem a principal fonte alimentar dos peixes que vivem nesse habitat. Assim, peixes de água fria profunda, como o atum e o salmão selvagem, apresentam elevado conteúdo de EPA e DHA, em comparação a outros peixes. No entanto, é preciso estar atento. Como grande parte dos peixes comercializados no Brasil é de cativeiro, o conteúdo de EPA e DHA no salmão, por exemplo, não é elevado. Estudo avaliando o conteúdo de AGPI n-3 nos peixes mais consumidos no Brasil identificou baixo conteúdo destes ácidos graxos nos peixes nacionais. Em relatório do INMETRO (2011), foi relatado que peixes brasileiros como a sardinha e pescadinha apresentavam maiores valores de AGPI n-3 dentre os peixes analisados, e que este conteúdo poderia variar de acordo com o tipo de preparação do peixe.
Qual a quantidade ideal a ser ingerida? Ou existe alguma orientação em relação a quantidade necessária para ingestão diária?
Os AGPI n-3 são ácidos graxos essenciais, uma vez que não possuímos endogenamente a desaturase responsável por sua síntese. Dessa forma, é necessário o consumo de fontes como o ácido linolênico, que endogenamente pode ser convertido em um AGPI n-3 de cadeia maior, como o EPA e DHA. Assim, é recomendado que o ácido linolênico apresente uma ingestão maior que 0,5% do conteúdo energético total (OMS, 2008). O consumo de EPA e DHA é muito importante durante a gestação e na primeira infância, já que são constituintes importantes para o sistema nervoso central. Assim, essas são fases da vida que apresentam recomendações específicas. Em 2008, a OMS apresentou recomendações específicas para cada classe de ácidos graxos, sendo indicada uma faixa de ingestão de AGPI n-3 de 0,5 a 2% para gestantes e lactantes, sendo o requerimento mínimo de EPA+DHA de 300mg/dia (sendo 200mg/dia em DHA). Para homens e mulheres adultos (não gestante ou lactante) a recomendação é de 250mg/dia de EPA+DHA. Dada a característica de ácido graxo essencial, o ácido linolênico é recomendado consumo maior que 0,5% da energia para adultos. As recomendações divergem um pouco de acordo com cada sociedade e país, mas apresentam valores que giram em torno dessas recomendações da OMS. Em recomendação recente (2017), a Sociedade Brasileira de Cardiologia, recomenda que em regiões com disponibilidade de peixes que são fontes de AGPI n-3 seja consumida duas porções de peixe por semana, no mínimo. Este consumo estaria associado à redução no risco cardiovascular (prevenção primária e secundária). A suplementação com AGPI n-3 (EPA e DHA) (2 a 4g) pode ser recomendada nos casos de hipertrigliceridemia grave, de acordo com a Sociedade Brasileira de Cardiologia.
O que o seu grupo de pesquisa tem descoberto sobre o uso do óleo de peixe no tratamento da obesidade?
Nosso grupo vem investigando os efeitos benéficos do óleo de peixe em modelo animal e os mecanismos moleculares envolvidos nessa sua ação benéfica. Além dos mecanismos descritos, observamos que parte do efeito hipolipemiante do óleo de peixe parece depender de uma sinalização adequada do hormônio tireoideano no fígado, assim como também depende da dieta materna no período perinatal, já que esta afeta o estado redox e vias de sinalização no fígado da prole. Essas investigações são importantes para elucidar o papel do óleo de peixe como atenuador da obesidade e de suas comorbidades, resultante da potente ação hipolipemiante e anti-inflamatória dos AGPI n-3 presentes no óleo de peixe. A prevalência da obesidade vem aumentando de forma alarmante no mundo, atingindo os indivíduos cada vez mais precocemente como na infância e adolescência. Além do importante papel do estilo de vida, caracterizado por hábitos alimentares inadequados e sedentarismo, a predisposição à obesidade do indivíduo também sofre influência do estilo de vida materno. Dentre as alterações perinatais, a dieta hiperlipídica materna durante a gestação e lactação torna a prole mais suscetível ao desenvolvimento de obesidade e suas comorbidades ao longo da vida, fenômeno adaptativo denominado programação metabólica. Assim, nosso grupo se interessou em investigar o papel da intervenção com AGPI n-3 na prole adolescente de ratas submetidas à dieta hiperlipídica no período perinatal, como uma estratégia terapêutica para esta fase da vida. De forma interessante, observamos que o consumo de dieta hiperlipídica materna no período perinatal afeta a resposta da prole adolescente ao consumo do óleo de peixe. Enquanto na prole de mães controle observamos os efeitos benéficos do óleo de peixe, na prole de mães que receberam dieta hiperlipídica (prole programada) observamos resistência à ação hipolipemiante do óleo de peixe. Apesar dessa prole programada não apresentar dislipidemia, o consumo de óleo de peixe durante a adolescência não teve impacto imediato em reduzir o triglicerídeo sérico (efeito observado na prole controle). Após esta intervenção durante a adolescência, os animais foram mantidos em condições normais até a vida adulta, quando avaliamos novamente. De forma bastante interessante, os benefícios do óleo de peixe foram observados no animal adulto, mesmo que o consumo de óleo de peixe tenha sido restrito ao período da adolescência. Esses animais adultos apresentaram atenuação da adiposidade e da leptinemia, além de reversão do acúmulo hepático de triglicerídeos. Esses dados mostraram que o óleo de peixe consumido durante a adolescência é capaz de promover efeitos benéficos em longo prazo, sugerindo um papel de programação metabólica durante a fase da adolescência. Assim, nossos dados sugerem que além do óleo de peixe poder ser usado como terapia durante a adolescência, seus efeitos benéficos seriam observados de forma importante em longo prazo, revertendo parcialmente as alterações metabólicas promovidas pela dieta hiperlipídica materna durante o período perinatal.
Dra. Luana Lopes – Laboratório de Endocrinologia Molecular do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (UFRJ).
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Publicado: maio de 2019.